Marly Winckler, uma das principais personalidades do vegetarianismo no Brasil, conta como está o movimento vegetariano no País
Vegetariana desde 1982, Marly Winckler é coordenadora para a América Latina e o Caribe da União Vegetariana Internacional (IVU – www.ivu.org), preside a Sociedade Vegetariana Brasileira (www.svb.org.br) e foi responsável por organizar o 36º Congresso Vegetariano Mundial, que aconteceu na cidade de Florianópolis, estado de Santa Catarina, em 2005. Ela é autora do livro Vegetarianismo – Elementos para uma Conversa Sobre e foi tradutora do livro Libertação Animal, de Peter Singer, considerado a bíblia do movimento de libertação animal. Nesta entrevista, Marly conta como o vegetarianismo entrou em sua vida e como está o movimento vegetariano no Brasil.
Quando e como você decidiu se tornar vegetariana?
Foi em 1982. Tive um namorado nesta época que era vegetariano e estava voltando da Índia. Ele me apresentou a parte ética do vegetarianismo e eu comprei a idéia. Então, virei ovo-lacto vegetariana. Desde então, o vegetarianismo tem uma presença cada vez maior na minha vida. Tem uma curiosidade também: quando minha mãe ficou grávida de mim, apareceu um livro na frente dela falando sobre vegetarianismo e ela virou vegetariana nos meses em que estava me esperando. Eu nasci e ela abandonou a dieta. Então, já estava predestinado... (risos).
E como foi a transição do ovo-lacto para o veganismo?
Naquela época, o veganismo não era divulgado como é hoje. Atualmente, as pessoas estão se tornando veganas por causa de como os animais são criados. Na época em que eu virei vegetariana, as pessoas adotavam o vegetarianismo mais por saúde ou por motivos religiosos e espirituais ou por respeito aos animais. Mas era uma coisa mais por compaixão e não pelos motivos de como os animais eram confinados, como acontece hoje. Quando eu tive notícias desse movimento, que nasceu na Inglaterra e já tem mais de 50 anos, eu fui a um festival vegano, que aconteceu na Califórnia, e lá eu conheci toda essa cultura. Então eu adotei também o veganismo. Isso foi em 1994.
Era mais difícil ser vegetariana na década de 80 comparado com hoje?
Atualmente, há uma oferta maior de produtos e este tema está entrando em debate. Nos anos 80, você falava que não comia carne e o médico dizia que você tinha que comer. Hoje, ele não pode mais dizer isso. Podemos mostrar para ele com documentos científicos que ele está equivocado. O próprio documento da Associação Dietética Americana, que não é uma associação vegetariana, estudou o assunto e tem um parecer favorável ao vegetarianismo. Vários elementos facilitam a vida do vegetariano hoje. A internet é um deles. Nos anos oitenta, cada um enfrentava o seu meio sozinho. Com os grupos online e as comunidades virtuais, um dá apoio para o outro. E isso é muito importante. Principalmente para o adolescente pois, sem esse apoio, fica muito difícil enfrentar a família. Ele pode trazer informação e conversar com pessoas idôneas e com conhecimento, que irão dar subsídios para ele conversar com os pais e dizer que isso não é coisa de maluco e é uma coisa bem embasada. Hoje, no Brasil, temos a Sociedade Vegetariana, com uma boa organização, possibilitando dar suporte para todos os vegetarianos.
Existe algum indício de que o vegetarianismo está crescendo no Brasil?
Não temos pesquisas específicas sobre isto no Brasil, mas há muitos indícios de que o vegetarianismo está crescendo. Temos tranqüilamente 5% da população que é vegetariana ou simpatizante e estamos caminhando, como nos países da Europa e Estados Unidos, para os 10% ou 12%. E esses indícios são os sites que são visitados. O site que criei em 1999, hoje, tem 3 mil visitas por dia. O próprio mercado está oferecendo um leque de produtos que antes nós não encontrávamos, tanto para vegetarianos como para veganos, abordando no rótulo que é um produto sem ingredientes de origem animal e que não é testado em animais. Estive com o presidente da Associação dos Supermercadistas de São Paulo e ele me disse que os únicos setores que estão em crescimento nos supermercados são as seções de produtos orgânicos e naturais. Esses são os setores onde o vegetariano se abastece. Outro indício de crescimento é que as duas grandes indústrias de carne do Brasil estão com produtos para vegetarianos. De repente eles começaram a ter pena dos animais? Não. É porque eles viram que é um nicho de mercado e querem estar presentes nesse segmento. Alias, é o que eu digo sempre: eles não matam os animais porque eles têm gosto por isso. No momento em que você mostrar as vantagens do vegetarianismo para a saúde, para o planeta, para a preservação do meio ambiente e para os próprios animais, mais pessoas irão se tornar vegetarianas e a indústria terá que transferir seus interesses para outras áreas.
Como está o Brasil em relação aos outros países na área de proteção dos direitos
dos animais?
Acho que o debate sobre os direitos dos animais está mais do que na hora de ser feito. A sociedade tem o direito de saber que, por trás de quase todos os produtos que ela consome, são feitos testes muito cruéis com animais, muitas vezes desnecessários. Esses testes não são imprescindíveis para que a ciência avance.
O Brasil, em algumas áreas, tem uma legislação muito boa. Mas ela precisa ser implementada e cumprida. Há muitos grupos se organizando hoje e a coisa está avançando. Os Estados Unidos já fizeram esse debate da vivissecção, e a Europa em sua maioria, mas é um assunto no qual ainda assim estão atrasados. Eles não atingiram o que é desejável. Recentemente, um menino organizou um protesto em favor dos testes e isto teve uma repercussão muito grande. A sociedade não foi à raiz do problema e não está toda posicionada.
Como surgiu a idéia de criar a Sociedade Vegetariana Brasileira?
A Sociedade Vegetariana Brasileira, a SVB, é o resultado de um processo de vários anos. Tive a felicidade de ser pioneira em certas coisas, como criar a primeira lista de discussão na internet sobre vegetarianismo no Brasil e o primeiro site em português. Isso foi um processo que foi arregimentando os vegetarianos, até chegar o momento em que sentimos a necessidade de criar a Sociedade. Até porque, a SVB já nasceu com a grande atribuição de criar o primeiro Congresso Vegetariano Mundial no Brasil, que é organizado pela União Vegetariana Internacional e acontece a cada dois anos em algum país do mundo. Ele foi o primeiro a ser realizado na América Latina. Então, nós precisávamos de uma sociedade para organizar esse congresso. A SVB foi criada em 2003 e está indo muito bem. Temos 20 grupos, em diversas cidades do Brasil, e sócios em mais de 100 cidades.
Como funciona a SVB?
A Sociedade é organizada em grupos e departamentos. Para criar um grupo da SVB, e cada cidade pode ter vários, bastam três sócios. Os sócios criam um grupo, dão um nome, escolhem um coordenador e podem começar a sua vida como um grupo da SVB. Existem grupos pequenos e grupos com mais de 50 sócios. O objetivo é organizar toda a "teia" da Sociedade. A idéia, como na cidade de São Paulo, por exemplo, é que cada bairro tenha o seu grupo. Assim, ele estará disponível à comunidade fornecendo informações, tendo um centro onde a pessoa possa fazer um curso de culinária, aprender a cultura vegetariana e conviver nesse meio. Temos os departamentos nacionais para qualificar nossa ação, como o de medicina e nutrição, com uma pessoa preparada para coordená-los e apta para dar suporte nessa área para todos os grupos, sócios, a mídia e etc. Além disso, os grupos organizam encontros periódicos. Pois nada substitui o contato pessoal.
Você acha que a mídia e os veículos em geral dão o devido espaço para o vegetarianismo?
Eu acho que menos do que deveria. A mídia tem a obrigação de considerar o vegetarianismo com a importância que ele tem. Nós temos uma mensagem que não é vazia. O vegetarianismo tem implicações importantíssimas na vida da sociedade e na preservação do meio ambiente. Essa dieta eleita no Brasil, que é a Standard American Diet, a dieta americana padrão, cujo acrônimo em inglês é SAD, que traduzindo significa triste, ela é triste mesmo. Essa dieta centrada na carne está ligada a uma destruição do planeta. A produção de carne e de soja estão destruindo as florestas. A soja produzida no País é utilizada para ser ração para o gado. O brasileiro, tirando o óleo, não consome soja. Não é um produto que faz parte da sua dieta. A soja produzida é para dar de ração ou para exportar, também para uso como ração. São necessários de 7 a 9 quilos de soja para produzir 1 quilo de carne. Essa é uma dieta que tem um desperdício embutido muito grande num mundo onde existe fome. Um quinto da população é desnutrida e tem muita morte por causa da fome. A cada dois segundos morre uma criança de fome. Isto é uma realidade. Hoje, temos abundância de alimentos. É uma questão mais política de distribuição. Mas em um mundo futuro de 12 ou 14 bilhões de habitantes, essa dieta não daria para todos. Ela é antiética porque não pode ser estendida para todos. Não fica bem você defendê-la. Além disso, ela está ligada às principais doenças que levam ao óbito da sociedade ocidental. E tem também a questão fundamental que é como estamos criando e abatendo os animais. Tudo isso é muito bem escondido por trás dos frigoríficos e dessa indústria toda para que a população não veja. E nós queremos colocar esse debate em pauta. A população tem o direito de se posicionar, tendo conhecimento de causa. A realidade é que a dieta vegetariana é saudável, adequada em termos nutricionais e benéfica para o planeta e para os animais.
Que conselho você daria para uma pessoa que está abolindo a carne do cardápio?
Primeiro, procure se unir a um dos grupos da internet que estão por aí. Ali, você vai encontrar apoio e discutir todas as questões com que nos deparamos ao adotar uma dieta vegetariana. Em segundo, procure uma organização, como a Sociedade Vegetariana Brasileira, que vai fornecer um subsídio correto sobre nutrição, para você não ficar desassistido e se sentir mais tranqüilo e fortalecido na sua opção.
“...a dieta baseada na carne tem um desperdício muito grande num mundo onde existe fome”.
Fonte: Revista dos Vegetarianos